Caminhar não é esporte. Embora as empresas de equipamentos esportivos tenham descoberto nela um grande filão: Não, não é um esporte! Não se trata de quem chega antes, no menor tempo ou acumula a maior rodagem.
Vale o parêntese para explicar: em uma das tirinhas do Calvin e Haroldo, o Calvin pergunta para o pai porque os adultos gostam tanto de colocar números em seu lazer. A graça é justamente essa: gente grande gosta de estragar com a brincadeira mensurando tudo.
Minha (recente e curta) experiência com a peregrinação segue a mesma falsa inocência da tirinha do Calvin: qualquer estatística tira toda a graça do percurso. Transformar a experiência em números reduz o processo a nada.
Minha primeira jornada foi de cara o Caminho da Fé. O trajeto todo, não, o trecho final: cerca de 130 km de Paraisópolis (MG) até Aparecida do Norte (SP) em quatro dias. E aprendi que não é sobre vencer o caminho. Não há uma linha de chegada. Nem sequer importa o ponto de partida. Tão pouco importa aonde se quer ir. Caminhar não é sobre chegar, mas sobre a jornada.
Para muitos, o início da trajetória tem um objetivo além: muitos iniciam o caminho em busca de autoconhecimento, penitência, superação do limite físico. Fui sem objetivo nenhum. Só queria experimentar ir a algum lugar dependendo apenas dos meus dois pés. Não sabia nada sobre a mítica romeira do Caminho que leva até a Santa Padroeira do Brasil, que dirá das dificuldades geográficas do percurso.
A intenção era somente andar. E descobri um novo mundo. Descobri que é leve. É tão leve. É tão pleno. É tão essencial.
Vale um segundo parêntese. Sou jornalista por formação e atuei seis anos em redação de jornal impresso, na área esportiva. Meu grande sonho de vida era estar em uma Olimpíada. Eu fui correspondente nos Jogos de Londres (2012), uma experiência incrível. Ainda lá, sabia que dificilmente teria outra experiência que estava vivendo naqueles dias entre os melhores atletas do mundo. Em outra dimensão, pude ter algo tão incrivelmente valoroso no Caminho da Fé. E descobri isso apenas andando. Fecha parêntese.
Sobre duas patas
O ato em si, não poderia ser mais primitivo. O homo erectus já andava. Paradoxalmente, é o mais evolutivo dos atos no reino animal: ao se colocar sobre duas patas e distinguir as traseiras como membros inferiores e exclusivos da caminhada e as dianteiras especializadas para pegar e manipular, o homo erectus se torna único.
Independente do objetivo inicialmente traçado, todo peregrino contemporâneo se reencontra, em maior ou menor grau, com essa ancestralidade: o caminhar longas jornadas pressupõe, inevitavelmente, o contato com a natureza e o aguçamento dos sentidos. Nem que por vezes, essa integração pareça mais um digladiar com as forças naturais: não estamos mais acostumados a enfrentar o calor, subidas em solo íngreme, descida em cascalho em longas distâncias. Por isso mesmo, para superar os obstáculos do ambiente, os sentidos se aguçam. E muito do que na rotina urbana parece ser essencial, torna-se dispensável.
Basta o ar que respira, basta o privilégio de ver as paisagens e fazer parte delas durante sua passagem e a capacidade de seguir. Pode ser o meio para profundos silêncios contemplativos ou para reorganizar o pensamento. Ou simplesmente não pensar.
A importância da jornada
No trecho do Caminho da Fé que percorri, senti exatamente a importância da jornada. Percebi que o caminho se faz pelas histórias que se somam. A energia de todos os peregrinos reverbera pela rota re-ver-be-ra.
Todos os pequenos dramas pessoais, intenções levadas no coração, metas de desafios a cumprir são valorizados a cada encontro pela estrada, mesmo que efêmero – e a peregrinação é recheada de encontros efêmeros – são valorizados.
Cada palavra dita encontra um ouvido atento, cada silêncio é respeitado, cada pequena situação que no cotidiano parece banal, no caminho, ganha importância grandiloquente: faz parte da experiência pode ser ressignificado. “Paz na terra aos homens de boa vontade” é uma oração que se concretiza para todas as religiões e para quem não as cultiva: a boa vontade é pré-requisito para seguir com as passadas.
Mesmo com dores imobilizantes musculares nas coxas e que aumentavam a cada dia, dizer que senti paz no percurso não é exagero. Senti fortalecimento da minha capacidade como ser humano: dependo dos meus pés, dos meus pulmões e nada mais.
Se as paisagens naturais que massagearam meus olhos por quatro dias me renovaram a capacidade de admirar, os desafios das subidas – e, especialmente, das decidas – me fortaleceram o corpo e a mente. Os companheiros de caminhada demonstraram incessantemente o valor do compartilhar.
Escrito assim, no infinitivo, esse verbo soa piegas, mas, flexionado em ações, é tão nobre em suas simplicidades práticas: desde uma história de vida, compartilhada; um gole d´água, compartilhado; um pedaço de alimento, compartilhado, uma riso, uma lágrima, uma canção, compartilhados pela estrada.
A cada dia vivi desafios diferentes na caminhada. Dicas? Esparadrapo, água e protetor solar são itens necessários. No mais, permita-se o método franciscano do desapego.
O Caminho da Fé é profícuo em números aos que pretendem conhece-lo na teoria antes de pisá-lo na prática. Mas já disse: não sou afeita às estatísticas. E dados numéricos reduzem a diversidade da experiência: é um trajeto que emana historias. Elas literalmente passam por você. A cada quilômetro, parada ou cura, ouve-se, vê-se e testemunha-se histórias que não se repetirão.
Por isso, ative os sentidos. Olfato, paladar, tato, audição. Há ainda o tempo de filosofar pelo caminho e o desapegar. É inevitável. Mesmo que a caminhada conte com alguns luxos físicos, fardos mentais são deixados no caminho. Eu deixei histórias que já não me serviam.
Os melhores momentos eram quando percebia o poder de caminhar sozinha, sentir o silêncio em volta, ouvindo apenas meus próprios passos. A sensação de autonomia. Que delícia. Viciante.
Preciso apenas dos meus pés para chegar. E, mesmo (muito) cansados, eles são gentis e me levam. Sensação de liberdade. De não precisar caber em lugar algum, em expandir para onde desejar. Ouço minha respiração, meus passos, meus bastões e a natureza em volta, que pouco se importa com a minha passagem.
Emocionante Adri! Chorei muito por saber que eu estava lá. Eu vi vc se superar!
Obrigado por compartilhar conosco esta história tão bonita!
Celso, você é parte do meu caminho da fé ! obrigada pela leitura e por ter feito minha jornada tão especial !
Adriana, muito legal seu relato.
Coincidência ou não, hoje domingo de manhã, ainda na cama, começo a ver as mensagens e recebo o informativo da Ana, contendo seu artigo.
E saber que logo mais, começarei a por na mochila minhas bugigangas para iniciar o Caminho da Fe amanhã desde a cidade de Tambaú.
Seu relato vem a aumentar a disposição de caminhar, pois compartilho com seu modo de ver o “caminhar” sem estatísticas, de sentir o andar.
Abraços
Olá, Odair ! Ótimo caminho para você ! Que colecione experiências fantásticas também !
Celso, você é parte do meu caminho da fé ! obrigada pela leitura e por ter feito minha jornada tão especial !