A última coisa que eu imaginaria que iria acontecer num trekking atravessando o Campo de Gelo Sul seria tomar um chá de barraca, mas aqui está a continuação da história:
Segundo dia: 12/01/2018:
O combinado foi de que se as condições climáticas permitissem, sairíamos cedo e, para minha surpresa, não entraríamos no Campo de Gelo pelo Passo Marconi conforme estudei, mas sim por outro caminho mais longo, porém mais seguro. O Passo Marconi tinha uma rampa mais forte e devido ao derretimento progressivo do glaciar estava desprendendo blocos de gelo que tornavam a travessia por ali muito arriscada.
A primeira noite de sono não foi como sonhei. Choveu e ventou o tempo todo.
Cedinho recebemos água quente e a instrução que não sairíamos a não ser que o tempo melhorasse um pouco. Lá pelas 9h a chuva deu uma pequena trégua e então me aventurei para fora da barraca para dar uma volta entorno do acampamento. Vi duas pessoas desmontando a barraca e seguindo para o Campo de Gelo Sul. Não eram do nosso grupo: elas haviam chegado depois de nós no dia anterior e já estavam avançando. Voltei empolgada para a barraca e as minhas companheiras já estavam arrumando suas mochilas. Mais que depressa arrumei a minha. Eu a Dani e a Melina ficamos dentro da barraca aguardando novas instruções elas não vinham. Foi então que o Jere, um dos nossos guias, veio nos avisar que passaríamos mais uma noite naquele lugar. Todos os indícios era que o tempo iria piorar ao longo do dia.
Realmente em poucos minutos o vento voltou a golpear a barraca e a chuva recomeçou vinda dessa vez com neve. Comecei a ficar preocupada e pensando enquanto tirava tudo da mochila, que talvez essa fosse somente na primeira tentativa. Havia lido relatos de pessoas que só conseguiram atravessar o Campo de Gelo na terceira tentativa.
Eu e a Dani ficamos conversando o dia inteiro. Ali começou uma bela amizade! A Melina gostava mais de ficar tomando mate com os meninos, então quase não participou da conversa. Só sai da barraca para ir ao banheiro, que era ao ar livre, é claro. O jantar veio cedo, às 18h00: Um delicioso macarrão liofilizado. Assim às 19h30 já estávamos embalando os sonhos de que o dia seguinte fosse melhor.
Terceiro dia: 13/01/2018
Amanheceu com chuva e vento… Lá pelas 8h00 tomamos nosso café solúvel com bolachas doces. Tem coisas que a gente só come na trilha mesmo!
Quando tomei coragem de sair para o banheiro tive uma surpresa: o pessoal que tentou avançar no dia anterior havia voltado no meio da noite. Mesmo estando protegido por um paredão gigante e um muro de pedras, o vento foi implacável e a barraca deles rasgou inteira. Eles retornaram. Fiquei com um frio na barriga só de pensar que eles iriam atravessar aquele rio de desgelo novamente. O rio devia estar mais caudaloso devido ao grande volume de chuvas. Detalhe: as montanhas ao nosso redor estavam muito mais brancas, pintadas pela neve.
Já eram 12h30 e o vento continuava muito forte. Mesmo com a barraca fechada, a areia estava por todos os lados, dentro e fora da barraca. Almoçamos 4 bolachas cream craker com presunto cru e queijo.
Já estava me conformando com a ideia de passar mais uma noite ali e retornar para El Chaltén sem ter nem pisado no Campo de Gelo Sul. Às 13h00 fomos avisados que teríamos uma janela de tempo bom (mas com ventos fortes) e aproveitaríamos para avançar mais três horas, até um acampamento próximo à Laguna de Los Catorze, bem próximo a entrada do Campo de Gelo.
Além de engolir o (grande) almoço, engoli o meu coração também, que estava saltando pela boca. Sim, iríamos prosseguir! Nem pude acreditar!!
Caminhamos por cerca de 2 horas em cima de pedras das mais variadas formas e cores, cercados por montanhas nevadas. A minha esquerda, sempre a vista, estava o Passo Marconi.
A cada momento a superação era diferente
Chegou um desafio que eu desconhecia: a passagem de uma tirolesa. Ela passava por cima de um canion onde corria a água de desgelo que vinha da direção do Passo Marconi. Nossos guias passaram duas cordas, colocamos cadeirinhas e fomos lá! Força nos braços, pois o ponto de chegada era mais alto que o ponto de partida. Fui a última a cruzar, pois estava brigando com o vento. Aliás foram muitas as DR com o vento…
Chegando do outro lado, rapidamente chegamos ao nosso acampamento. Nós, as “meninas”, ajudamos a equipe a montar as barracas, mas o Jaison, o cliente coreano, ficou só fotografando e observando. Ele levou a própria barraca (ou melhor enviou), que era verde escura.
Havia uma pequena cascata bem próxima ao nosso acampamento que era super bem protegido do vento. Peguei água para mim e ajudei a pegar água para a cozinha. Enquanto o Pipa, o guia principal, aquecia água para um mate, fui escovar meus dentes.
Ah como a gente dá valor a pequenas coisas na trilha!!
Achei que estava longe das barracas para escovar os dentes, mas na hora que cuspi veio uma rajada de vento que cobriu a barraca verde escura do Jaison de branco. Quase fiz xixi na calça de tanto rir (sozinha). Passado o acesso de risadas fui rapidamente jogar água na barraca pra limpar a sujeira que causei. Tive outro acesso de riso ao tentar explicar para o pessoal o que tinha acontecido. Tudo aquele dia era motivo para risadas. Foi o um dos finais de dia mais gostosos e descontraídos. Protegidos do vento pudemos tomar mate, conversar e jantar juntos.
Fomos dormir cedo, pois o dia seguinte iria ser longo e exigente: Faríamos os dois dias mais pesados em apenas um dia, devido ao mal tempo que nos prendeu nos primeiros dias.
Apesar da pressão, essa também foi uma das melhores noites que tive. Eu, meu colchão inflável e um saco de dormir para -30 graus, protegidos do vento! Estava melhor que em muita cama de hotel, sem exageros.