A equipe foi informada que teria apenas uma janela de um dia e meio para entrar e sair do Campo de Gelo antes que chegasse a próxima tempestade. Então: pernas pra que te quero! Não tínhamos tempo a perder…
Quarto dia: 14/01/2018
Para chegarmos no Campo de Gelo Sul foi uma ascensão de quase 800 a partir do nosso acampamento próximo à Laguna de Los Catorze e mais 25 km de caminhada no gelo até o novo acampamento, desta vez em cima do gelo!
Antes mesmo de amanhecer já estávamos prontos para o desafio que viria pela frente. O dia começou a clarear e já estávamos entre pedras e gelo. A primeira parte do dia foi a mais difícil e técnica: ultrapassar o Paso de los Catorze.
Foi uma experiência desafiadora: usar piolet e crampon em ascensão que exigem técnicas as quais eu não estava familiarizada. O instinto de sobrevivência e a necessidade deram um “certo” incentivo para eu aprender rapidamente.
Foi um alívio para mim quando conseguimos vencer os ventos fortes e contra o nosso fluxo na ascensão no gelo. Isso sem contar que foi uma alegria trocar os crampons pelas raquetes de neve e guardar o piolet.
A primeira visão do Campo de Gelo
Sentei em cima da mochila para descansar e recuperar o fôlego. Foi quando levantei os olhos… Ali estava ele, bem à minha frente: o meu Mundo Branco – o Campo de Gelo Sul!
Pedi “aquela” licença poética e recitei lentamente, em alto e bom som: PUTAQUEUPARIU!
Eu estava junto de uma das maiores riquezas do nosso planeta, a terceira maior reserva de água potável (congelada) do mundo. Infelizmente nos últimos 12 anos, a quantidade de gelo que desapareceu desse Campo de Gelo é suficiente para cobrir todo o território brasileiro com mais de 2,7 cm de água.
Tínhamos muitas horas de caminhada no gelo para chegar próximo ao Circo dos Altares, onde seria nosso acampamento. Bora lá se encordar, por segurança. O Campo de Gelo tem gretas que às vezes ficam escondidas pela neve. Por segurança e agilidade nos dividimo em das equipes compostas por quatro pessoas cada.
Depois de algum tempo caminhando não é que veio aquela vontade de fazer xixi… e agora? Não tinha uma moita, nem sequer uma pedrinha para a gente se esconder atrás. Era uma imensa planície branca. O que fazer?
Ainda bem que não estava sozinha no mato sem cachorro, ou melhor, no gelo sem moita. Todos da equipe precisavam ir ao banheiro. Então, um por vez se desencordava, dava alguns passos e era ali mesmo. Todos respeitavam e não olhavam. Nós mulheres ainda temos que desvestir a cadeirinha… No final ficaram vários buraquinhos amarelos na neve.
Esse foi o dia mais difícil de toda a expedição. O vento era irritante (me irritou profundamente do início ao fim) e a mochila funciona como a vela de um barco. Bem que eu tentei aprender a velejar, mas o vento não era constante. Além de forte ele vinha em rajadas inesperadas, que nos golpeava. Xinguei, briguei, lutei com o vento. Perdi a conta de quantas vezes caí de joelhos na neve por causa dele e parei o nosso comboio. Ali tinha mesmo que dançar com o vento! Metáforas da vida…
Houve sim momentos de calmaria durante a caminhada, onde eu me sentia em transe, no meio de uma realidade virtual, mas eu estava ali em mindfulness – meditando e caminhando sobre o Campo de Gelo Sul, com minhas raquetes, minha mochila, e meus bastões!
Chegando ao final do dia mais difícil
Saímos da Argentina, passamos pelo Chile e voltamos para solo (gelo) Argentino. O cansaço foi aumentando e a fadiga chegando… As horas passavam e os pés estavam cada vez mais pesados até que avistei a equipe da frente tomando o rumo da encosta em direção ao Círculo dos Altares. Yes! Estávamos chegando, mas mesmo assim eu não parava de repetir para mim mesma: Eu posso! Eu sou forte! Eu consigo!
Pensa que o dia acabou? Nada! Na chegada fizemos um mutirão para aplainar o terreno, cavando na neve, fazendo cortes e aterros, e sem seguida compactação do gelo. Fizemos até escadas e muros. A excitação pelo primeiro acampamento selvagem na neve era tanto que todo o cansaço sumiu por algum tempo.
Acampamento montado, abrigo garantido, tínhamos outra necessidade: Derreter gelo para ter água para beber e fazer nosso jantar. A água de degelo sempre fica um pouco crocante, pois vem com pó de pedra. Nessas alturas eu queria mais que o dia acabasse e eu pudesse descansar sobre meu isolante inflável.
Depois de uma boa refeição quente, fiquei observando o sol sumir atrás do Cordón Mariano Moreno, um maciço montanhoso que emerge do centro do Campo de Gelo Sul. Estávamos acampando numa área protegida e pude curtir a imensidão branca e ouvir silêncio. Foi difícil dormir, sabendo que iria passar apenas uma noite ali. Isso me fez sair da barraca no meio da noite para observar as estrelas. Não poderia perder essa chance. Poderia ser a única!
Agora era dormir para sairmos no dia seguinte o mais rápido possível e fugir da tempestade em cima do Campo de Gelo!